quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Lançamento do livro "Ávidas paixões, Áridos amores"

31 de agosto de 2007

Galeria Gamela do Cabo Branco

João Pessoa - PB - Brasil












Uma vida tecida de palavras

Neide Medeiros Santos*


Comecemos pela capa – fotografia de um mar sereno; galhos secos retorcidos que aparecem em primeiro plano e flores de vermelho intenso contrastando com o verde-azul do mar. Esse contraste das cores condiz com o título do livro. “Ávidas paixões” se associam a um desejo intenso, ardoroso, inflamado; “Áridos amores” remetem à dureza, algo seco, frio.

O livro, como um todo, compõe-se de 40 poemas não nominados, apenas numerados; os poemas 35, 36, 37 e 38 foram pinçados do livro Vadios afetos. 36 poemas vêm antecedidos por epígrafes e uma epígrafe de Machado de Assis antecede a apresentação dos poemas. Machado de Assis, profundo conhecedor da alma humana, filosofa, com certo pessimismo, na epígrafe escolhida para abertura do livro: "Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões".

No que se refere à escolha das epígrafes, sentimos que foi um trabalho de garimpagem, a escolha acertada para cada poema. Uma breve amostragem dessas escolhas comprova o que afirmamos.

O poema 25 traz uma epígrafe de Baudelaire: "O tempo é o obscuro inimigo que nos corrói o coração", e o primeiro verso do poema ratifica a epígrafe: O tempo des/const/rói a vida, e a 5ª. estrofe, formada apenas por um verso, é uma repetição compartilhada da desconstrução: O tempo nos tem des/const/ruído.

O poema 38, publicado anteriormente em Vadios afetos, vem acompanhado de uma epígrafe de Mário Quintana: "Amar é mudar a alma de casa." Essa epígrafe se contextualiza, de forma mais evidente, na última estrofe:

E como não recomeçar o jogo se, à maneira de Quintana, é o amor que muda a minha alma de casa?

Há muito coisa ainda para dizer, mas isso exige um estudo centrado apenas nas epígrafes e há poemas que precisam ser descobertos, palavras que merecem ser contempladas mais de perto.

No universo poético de Ávidas paixões, áridos amores, o "Poema 17", que vamos transcrever na íntegra, talvez seja o mais representativo do trabalho artesanal de Arriete Vilela com a palavra:

Poema 17

Não enxerguem um símbolo onde nenhum foi pretendido.
Samuel Beckett

Não me interessa
o lado direito do bordado
da minha escrita.

Prefiro emaranhar-me aos fiapos
do avesso que sou – em que o tecer,
pelos repetidos caprichos,
deixa de ser revelador.
Não me interessam os registros,
à esquerda do bordado,
que parecem contar a história
que os outros pensam ser a minha
- e que não é - .

Prefiro pelejar-me nos esgarçamentos
das pontas que não foram devidamente
arrematadas e em que ressoam
vozes femininas,
como se bisavó e avó,
mãe e tia pudessem, enfim, reconhecer
que se desperdiçaram em amores abrasadores
e tirânicos.
Aliás, sinto-me cansada da herança dessas mulheres
cujo bordado da própria vida deixou à mostra
cores desesperadas, ciúmes desnecessários
e afetos enrodilhados.

Por isso permaneço quieta nas flores azuis do linho: só o que me interessa é a interioridade do bordado.

A epígrafe de Samuel Beckett é retomada em forma de versos na 3ª. estrofe do poema, quando o eu-lírico assim se expressa:

Não me interessam os registros, à esquerda do bordado, que parecem contar a história que os outros pensam ser a minha - e que não é -.

Muitas vezes o leitor quer atribuir certos registros como símbolos de uma vida, mas as palavras camuflam sentimentos, dores, afetos e amores. Tudo é e não é, como bem disse Guimarães Rosa. O direito do bordado, na sua aparência, é o lado revelador da verdade, por isso o eu-lírico prefere emaranhar-se nos fiapos do avesso, nas pontas que não foram devidamente arrematadas e permanecer oculta na interioridade do bordado. No início do nosso texto, falamos sobre a presença da intratextualidade nos poemas, contos e crônicas de Arriete Vilela. O "Poema 17" contém muitos elementos intratextuais. “Avesso”, “bordado”, “fiapos”, “tecer”, “afetos” são vocábulos reiterados em seus inúmeros livros. Arriete é uma tecelã que sabe, como nos versos de Marcus Accioly, tecer bem tecida uma canção. Na sua fábrica, ela produz tecidos de cambraia de algodão e borda as palavras em folhas de papel que são lançadas ao vento. Felizes são aqueles que conseguem apanhar algumas dessas folhas.

* Neide Medeiros Santos é ensaísta e crítica literária.





Alguns livros de Arriete Vilela


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